09 Outubro 2015
Alguns anos atrás, eu participei de uma apresentação do falecido Pe. Raymond Brown, um sacerdote sulpiciano e um dos maiores estudiosos estadunidenses da Bíblia, na qual ele comentava as óbvias diferenças entre os Atos dos Apóstolos e a carta de São Paulo aos Gálatas nos seus relatos do Concílio de Jerusalém.
A reportagem é de John L. Allen Jr., publicada no sítio Crux, 08-10-2015. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Brown brincou dizendo que, de vez em quando, ele tinha a grande sorte de perder uma reunião do corpo docente do Union Theological Seminary, onde ele lecionava. Depois, quando ele perguntava aos colegas sobre o que tinha acontecido, ele sempre ficava impressionado com os contrastes nas lembranças deles.
"Um me dizia: 'Você devia ter estado lá, porque eu realmente disse isto e aquilo'", contou Brown. "Quando eu perguntava a outras pessoas sobre isso, elas diziam: 'Ah, essa pessoa disse aquilo? Eu realmente não me lembro...'."
O seu ponto era que, sem qualquer intenção de enganar, as prioridades e os interesses que as pessoas trazem para uma experiência inevitavelmente colorem a forma pela qual elas a recuperam, o que ajuda a explicar os contrastes de outra forma intrigantes entre as duas versões bíblicas do mesmo evento.
Essa visão exegética vem à mente em meio à cobertura do Sínodo dos bispos de 2015 em Roma, porque capta o aspecto mais frustrante para os jornalistas que tentam cobri-lo.
O segredinho sujo é que nós não estamos realmente cobrindo o Sínodo em nada. Na maior parte, estamos cobrindo pessoas que nos falam sobre o Sínodo, o que é uma coisa completamente diferente.
Realmente cobrir o Sínodo significaria estar dentro da Aula durante as discussões, sendo capaz de desenvolver as nossas próprias impressões sobre o que está sendo dito, medir a reação, assistir à linguagem corporal, à entonação e à atmosfera, e er uma sensação geral dos temas emergentes por conta própria.
É assim que se poderia cobrir uma sessão do Congresso, por exemplo, ou uma reunião de cúpula da ONU, ou qualquer outra reunião importante, mas decididamente não é assim como as coisas funcionam em um Sínodo dos bispos.
Ao contrário, no primeiro dia, os discursos introdutórios foram transmitidos ao vivo, e os textos completos foram fornecidos – embora apenas em italiano, o que é um desafio para as pessoas que não cobrem o Vaticano o tempo todo. A partir desse ponto, as transmissões de vídeo acabaram, e todos os observadores externos, incluindo grande parte dos repórteres, foram expulsos da sala do Sínodo.
(Os jornalistas têm a possibilidade de entrar para assistir a oração da manhã todos os dias, mas são enxotados antes que as sessões de trabalho comecem.)
No passado, o Vaticano fornecia resumos escritos das falas de cada bispo durante as assembleias gerais do Sínodo. Embora muitas vezes não fossem a versão completa daquilo que os bispos disseram, pelo menos permitiam que os prelados individuais fossem citados pelo nome em termos dos pontos contidos nessas versões breves.
Essa prática foi suspensa durante o Sínodo de 2014 e não reviveu desta vez, com o fundamento de que os bispos estavam sendo encorajados a ser mais espontâneos e a não se prenderem a um texto preparado.
Somado ao vácuo informativo, há porta-vozes responsáveis por cada uma das principais línguas que se sentam em uma galeria especial durante as reuniões sinodais e que vão à Sala de Imprensa do Vaticano depois para fornecer uma visão geral do que eles ouviram, sem atribuir pontos individuais a oradores específicos.
(Como nota de rodapé, esse costume dá origem a um dos grandes jogos de salão do período sinodal. Sempre que esses porta-vozes se manifestam, os repórteres se reúnem e tentam desvendar quem, dentro do Sínodo, seria mais provável de ter proferido as citações desencarnadas que recém-recebemos.)
Há vários problemas com esse modo de fazer as coisas, começando pelo fato de que as coletivas de imprensa geralmente ocorrem às 13h de Roma e continuam por ao menos uma hora, colocando um sério empecilho em um dos aspectos mais gloriosos da vida na Cidade Eterna: o almoço.
Muito mais importante é o fato de que há muito mais material flutuando nessas discussões gerais para capturar todas elas, o que significa que os porta-vozes devem escolher, e isso abre a porta para o problema que Brown descrevia como "viés do espectador".
O mesmo se aplica, aliás, quando os repórteres fazem entrevistas com bispos individuais ao longo do dia. Mesmo assim estamos recebendo a opinião de uma pessoa sobre a dinâmica, em vez de testemunhá-la por conta própria.
Quando os bispos se dividem em pequenos grupos, nós não temos nada, nem relatos anônimos das suas discussões, embora o Vaticano tenha se comprometido a divulgar os seus relatórios escritos ao longo do dia.
Em alguns âmbitos, o fato de estarmos recebendo informações de segunda mão levou a acusações de manipulação explícita. A suspeita é de que estamos sendo apresentados a uma visão seletiva da discussão, destinada a promover certos resultados e a minimizar a dissidência.
Na realidade, essas teorias da conspiração geralmente dão muito crédito ao Vaticano. Em vez de um complô maquiavélico, a explicação mais comum é de que as pessoas estão simplesmente se virando, fazendo o melhor possível a partir de uma situação imperfeita.
Deixemos dois pontos claros.
1. A equipe midiática do Vaticano faz um esforço heroico. Eles muitas vezes trabalham quase o dia inteiro durante um mês inteiro. Eles estão se esforçando muito para ser sensíveis às necessidades da mídia; por exemplo, convidando ao menos alguns bispos para falarem com a imprensa todos os dias.
(No máximo, eles estão sendo um pouco "acomodativos" demais, permitindo que todos os tipos de grupos de ativistas e defensores se registrem como jornalistas e entrem na Sala de Imprensa, com o risco de que as coletivas de imprensa sejam sequestradas por partidos com uma agenda específica.)
2. Há uma boa razão para as portas fechadas. Além da possibilidade de que os participantes nas deliberações do Sínodo, ocasionalmente, possam ter informações sensíveis para divulgar, ninguém quer que eles se exibam para as câmeras de TV, em vez de falarem honestamente o que eles pensam.
Dito isso, é cada vez mais comum que os bispos, por conta própria, divulguem os textos de que eles disseram na Aula, seja através do seu próprio gabinete de imprensa, seja pelas mídias sociais. Levando isso em conta, parece cada vez mais inútil impor um blecaute informativo.
Talvez, daqui para a frente, um sistema melhor seria tornar públicas as sessões gerais, com uma transmissão de vídeo ao vivo e com um grupo de jornalistas dentro da sala. Os grupos de trabalho ainda seriam fechados, com a ressalva de que os relatórios completos seriam divulgados.
Se isso acontecesse, não haveria a necessidade de coletivas de imprensa em que citações e temas são apresentados sem dar os nomes relacionados, e, portanto, haveria uma redução do risco de viés ou de seletividade por parte dos empregados vaticanos. (Esse risco ainda existiria no corpo da imprensa, naturalmente, mas essa é outra conversa.)
Essa pode não ser uma solução perfeita, mas, sem dúvida, ao menos levaria a cobertura midiática do Sínodo e a realidade do que acontece a um alinhamento um pouco mais próximo, e isso é do interesse de todos.
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Um segredinho sujo sobre a cobertura midiática do Sínodo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU